Previsto em lei, aborto ainda esbarra em questões morais no Brasil que dificultam sua execução

Dados do SUS indicam que quatro em cada 10 mulheres devem viajar mais de mil km para conseguir realizar o procedimento

No mês de junho deste ano, a suprema corte dos Estados Unidos anulou o direito ao aborto, procedimento legalizado no país em 1973 após evento que ficou conhecido como Roe X Wade. A ocasião foi marcada por quatro anos de disputa entre Norma McCorvey, sob o pseudônimo de Jane Roe, e o promotor público do condado de Dallas Henry Wade pela legalização do método.

No Brasil, o aborto está previsto no artigo 128 do Código Penal, o qual determina sua legalidade em três hipóteses, sendo elas o salvamento da gestante que se encontra em gravidez de risco, nos casos de estupro e nas situações em que o feto seja anencéfalo. Contudo, o procedimento abortivo está sujeito à punição de um a três anos de detenção à mulher que o realizar de forma induzida.

Embora o aborto seja legalizado no país a partir dessas três hipóteses, o evento envolvendo a atriz Klara Castanho não é comum de se presenciar. A atriz, após engravidar de um estupro, decidiu por dar a criança à adoção. Em contrapartida, dados da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), feita em 2016 pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis) e pela Universidade de Brasília (UnB), indicam que uma em cada cinco mulheres, ou 20% da população feminina brasileira, terá praticado o procedimento abortivo ilegal até os 40 anos.

Imagem: Agência Brasil


De acordo com a advogada feminista Gabriela Souza, professora e sócia da Escola Brasileira de Direitos das Mulheres, o procedimento do aborto vem sendo, há séculos, enfrentado de maneira teórica, sendo que o debate, em geral, gira em torno de questões éticas, morais, sociais, biológicas, religiosas, políticas e jurídicas. “O fato é que ainda há grande controle sobre os corpos das mulheres e de pessoas que gestam”, pontua. “A inobservância aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e a criminalização da interrupção voluntária da gestação ferem uma série de direitos fundamentais expostos na Constituição Federal do Brasil além de violar o direito à saúde, a integridade física e psíquica da mulher”, critica.

Ainda que a Pesquisa Nacional do Aborto tenha identificado que a religião professada não assume um caráter impeditivo para a opção do aborto, uma vez que 56% dos 251 casos registrados foram praticados por católicas e 25% por protestantes ou evangélicas, no Brasil, especialmente, o tema aborto ainda esbarra em constantes negativas por parte da população.

Não por acaso, uma pesquisa sobre procedimento abortivo feito pelo Datafolha em 2019 identificou que 41% das 2.077 pessoas ouvidas ainda se posiciona contra o aborto em qualquer situação. Somente 6% defende a ideia de que o método seja permitido em qualquer ocasião.

Para o sociólogo Marcos Brey, é possível observar algumas razões do porque grande parte da sociedade brasileira é contra a prática do aborto. Primeiro, segundo ele, é a desinformação. Segundo ele, uma parte da população desconhece os motivos e condições para a realização de um aborto dentro da lei aqui no Brasil. “Muita gente não sabe que milhares de mulheres morrem por praticarem a interrupção da gestação de forma clandestina e que, a outra parte que também a faz ilegalmente, a prática em melhores condições porque podem pagar”, salienta. “Ou seja, o fato das pessoas serem contra o aborto não faz com que elas não o pratiquem”, conclui.

Não sendo essa a única razão para o rechaço social em relação ao procedimento abortivo, o sociólogo elenca, também, o perfil altamente conservador da população. “O conservadorismo está em nossas bases culturais, as quais possuem grandes estruturas religiosas”, observa. “E sendo o Brasil um país muito religioso, o imaginário coletivo abomina o aborto”, explica.

Manifestação contra o aborto na Esplanada dos Ministérios ocorrida mês passado. Na ocasião, a 15ª Marcha Nacional da Cidadania pela Vida defendeu a aprovação do Estatuto do Nascituro. Imagem: Sergio Lima


No entanto, o episódio da menina de 11 anos, de Santa Catarina, que teve de apresentar ao Hospital Universitário de Florianópolis uma autorização judicial para fazer o procedimento abortivo, mesmo ele sendo garantido legalmente no Brasil desde 1940 em casos de estupro, como foi o caso, evidenciou outra questão, que é o tempo de gestação como diretriz para a execução do aborto.

De acordo com o Dr. Rômulo Victor Martins, professor de ginecologia da faculdade de medicina Humanitas, o ideal é que o procedimento seja realizado até a 12°semana. “Isso evita possíveis desconfortos à mulher, como sangramentos, complicações cirúrgicas e infecções”, explica. “A literatura relata que acima desse período há riscos maiores associados de complicações para a gestante”, alerta.

Ilustração de feto com 12 semanas de desenvolvimento. Imagem: reprodução da internet


O caso de Santa Catarina, ainda que tenha posto em discussão o tempo de gestação ideal para realizar o aborto, não é um evento isolado de recusa ao acesso do procedimento. Dados atualizados do Sistema Único de Saúde (SUS) indicam que quatro em cada 10 mulheres devem viajar mais de 1 mil km para conseguir realizar o método abortivo.

Foram 1.823 abortos feitos entre janeiro de 2021 e fevereiro de 2022 sendo que, desses, 711 aconteceram em cidades diferentes das quais as mulheres estavam. Para a coordenadora de defesa dos direitos da mulher da Defensoria Pública Estadual do Rio de Janeiro, Flávia Nascimento, o grande problema que esse cenário mostra é a objeção de consciência por questões de crença religiosa ou ideológica de alguns médicos. “Nessas situações, o serviço de saúde tem de assegurar o procedimento com outro profissional ou o encaminhamento da paciente para outra unidade de saúde capaz de realizar o método abortivo”, explica.

Apesar da objeção de consciência parecer inconcebível, o código de ética médica, dentro dos seus princípios fundamentais, refere ao médico o exercício de sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, exceto em situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou, ainda, quando sua recusa traz danos à saúde do paciente.

O mesmo código de ética, inclusive, dá ao médico o direito de se recusar a fazer procedimentos medicinais que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência. “Dessa forma, a objeção por questões de consciência do profissional não é cabível de punição”, ressalta o professor de ginecologia da faculdade de medicina Humanitas.

Evitando o aborto

De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve, no Brasil, 66.020 casos de estupro em 2021, uma alta de 4,9% em relação a 2020. Desse montante, 45.994 foram de violência sexual contra meninas de até 14 anos. Apesar dos números, a medida que auxilia na diminuição do estupro e, consequentemente, do aborto, está na educação sexual.

Educação sexual nas escolas. Imagem: reprodução da internet


Para a coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Juliana Martins, a escola entra, nesse processo, como um ator importante no enfrentamento da violência sexual. “Desde ajudar a reconhecer vítimas de violência a partir da mudança de comportamento ou de algo que foi dito, a escola pode ajudar crianças e adolescentes a identificarem as violências que possam estar sofrendo dentro de casa”, salienta.


Em um país como o Brasil que, em 2021, abrigou um caso de estupro de mulher ou menina a cada 10 minutos, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, percebe-se, de acordo com o cientista social Caio Fernando Alves Duarte Santos, que a ocorrência não tem relação com uma sexualização por duas razões.

Uma porque, segundo ele, nenhuma violência sexual tem o vínculo de uma sexualidade, pois é sempre uma relação de poder. A outra é o patriarcalismo muito forte dentro da estrutura familiar que condiciona frequentemente essas situações. “Então se por um lado você tem um peso muito forte dessas ideias patriarcais, elas também dialogam com certa estrutura machista de determinar que esse chefe de família ou que esse individuo da figura masculina dentro de casa vá estruturar esse cenário de poder”, explica.

Essa realidade existe por dois motivos. Primeiro, de acordo com a coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, é que a violência de gênero no Brasil, aqui incluindo a violência sexual, tem fortes raízes históricas e culturais, o que as tornam naturalizadas. O outro motivo é que, no Brasil, as violências sexuais são as de maior subnotificação devido à envolvência de culpa, tabu ou vergonha em torno do tema. “Esse é um debate que não pode ser interditado, pois é justamente o tabu ou o não falar sobre esse assunto que contribui para que tantas meninas e mulheres sejam vítimas das mais diversas violências baseadas em gênero”, reforça Juliana.