Música da eternidade

Não existe receita para compor uma canção imortal, mas unir composição e storytelling pode ser um começo

​Autores, compositores e intérpretes sonham em ter suas músicas emplacadas nas rádios, em temas de novelas, filmes e seriados, ou recebendo sucessivos streamings. Mais do que isso, desejam que suas obras atinjam patamares de imortalidade e sejam consumidas sem pausa.

Para que tal objetivo seja alcançado, a própria composição, acima de tudo, precisa adquirir o atributo da
longevidade. E essa é uma receita inexistente ou até mesmo difícil de ser alcançada. Ainda assim, existem variáveis que estão presentes em canções que atravessam gerações.


De acordo com o compositor Maurício Gaetani, arranjador, músico e produtor musical, existem alguns elementos e variáveis que constantemente estão presentes em canções de grande aceitação popular. O primeiro deles é que a música precisa ter algum apelo minimamente universal, na letra ou na melodia, capaz de emocionar ou se comunicar com muitas pessoas.

O segundo ponto é que a letra precisa falar de experiências comuns à maioria das pessoas, dores e alegrias do ser humano. Logo em seguida vem a melodia, que deve ser de fácil assimilação e que seja absorvida naturalmente pelo público. A quarta variável é a possibilidade de a canção se beneficiar de momentos históricos ou de contextos especiais, como fazer parte da trilha de um filme, série, ou novela.


Foto: reprodução da internet


Segundo Gaetani, outro ponto a lembrar, no caso das músicas estadunidenses, é que uma grande potência, como o EUA, que exporta tantos produtos culturais para o mundo, vai acabar tendo muito mais músicas imortais no planeta do que os outros países, que exportam menos cultura pop. “Todo o globo consome a cultura e os artistas estadunidenses”, enfatiza. “Por isso existem tantas músicas imortais globalmente em inglês, enquanto aquelas de outros idiomas são imortais regionalmente, às vezes apenas no próprio país em que foram criadas e divulgadas”, explica o músico e produtor musical.

Dando atenção a esses pontos, a possibilidade de a música atingir grande gosto popular é grande. De acordo com o Chart Data de 2022, uma das canções que conseguiu o feito atualmente foi Blinding Lights, do The Weeknd. Ela conquistou o maior número de streamings na história do Spotify, superando os 3,3 bilhões de plays anteriormente alcançados por Shape Of You, de Ed Sheeran.


Imagem: divulgação 


Se baseando em um formato anterior de viralização musical, You've Lost That Lovin' Feeling, do duo The Righteous Brothers, foi executada mais de 8 milhões de vezes, sendo a mais tocada nas rádios e TVs dos Estados Unidos, de acordo com levantamento feito pela BMI (Broadcast Music Inc.), em 2012. A faixa de 1964 já arrecadou mais de US$ 32 milhões, sendo regravada por mais de 2.200 artistas.


Em se tratando de Blinding Lights, Gaetani aponta que o fato de ela atualmente ocupar o primeiro lugar pode ser apenas a fotografia de um instante, sendo que ela estar nessa posição hoje não significa que seja melhor, mais forte ou mais importante do que milhares de outras músicas do Spotify. 

“É apenas um momento da sociedade”, pondera. “Não existe receita única para o sucesso, mas o básico é: devem ser músicas com as quais as pessoas possam se identificar de algum modo, com a letra ou com a melodia”, lista. “A música precisa fazer parte da realidade e do mundo das pessoas”, enfatiza.

Mesmo conseguindo garantir noções de proximidade com o ouvinte, a música hoje apresenta outro desafio: conquistar a atenção do espectador. Afinal, as pessoas não apenas vivem um contexto de hiperconectividade no que tange as tecnologias. No que se refere à música, algo semelhante acontece.

De acordo com um levantamento feito em fevereiro de 2022 pelo site Music Business Worldwide, mais de 60 mil músicas são adicionadas diariamente apenas no Spotify. Segundo o compositor
Alexandre Lemos, produtor e pesquisador na área musical, sobressair no Spotify é tão complexo quanto se destacar na TV antigamente, feito que depende da capacidade de investimento do artista, o que significa jabá. “Isso não mudou”, enfatiza. “O que aconteceu é que essa vitrine do Spotify está acessível a qualquer um que nela queira colocar uma música”, explica.

De maneira ampla e enxergando o contexto musical na totalidade, Lemos enfatiza que quem determina o sucesso de uma canção é o jabá, o investimento que se faz para manter a música em evidência. Para ele, é essa massificação que determina, de modo geral, a aceitação do público. 

“Os executivos das majors se escondem atrás de uma falsa verdade dizendo: ‘a não, não adianta, o sucesso é do povo, não adianta querer determinar’”, denuncia. “Claro que adianta!”, continua. “A propaganda é a alma do negócio e isso vale para qualquer coisa, inclusive para canção popular”, enfatiza.

E nesse ponto, outra opção que pode auxiliar o músico a garantir maior audiência é, de fato, o tema lírico de suas canções. A história é o detalhe que amarra a estrutura da música em um enredo linear, fator que colocou American Idiot, do Green Day; The Wall, do Pink Floyd; Tommy, do The Who; 20112, do Rush, The Black Parade, do My Chemical Romance; e Good Kid, M.A.A.D City, do Kendrick Lamar, no top 10 do ranking dos melhores álbuns conceituais de todos os tempos feito pela Rolling Stone em 2022.


Lançado em 2004, American Idiot se posiciona no segundo lugar da lista da Rolling Stone. Imagem: reprodução da internet


Para Alexandre Lemos, é preciso lembrar que a origem da canção é contar história. Segundo ele, as primeiras formas de expressão rimadas, cantadas ou não, mas já chamadas de canção, sempre foram a contação de histórias. “A gente tem que decidir se a maioria dos álbuns conceituais tem uma estrutura de storytelling ou se ter essa estrutura é o que os torna conceituais”, reflete.

Sendo uma ou outra opção, o fato é que, dos álbuns listados no top 10 do ranking da Rolling Stone, seis deles são expoentes do rock e usam o gênero como auxiliador na contagem dos enredos propostos. Ainda assim, não é o rock o estilo que oferece maior liberdade na arte de contar histórias.

Por mais que cada gênero dê ao artista liberdade no ato de contar histórias, Gaetani vê no rap uma vantagem nesse processo. “Se for avaliar, um rap, que costuma ter mais texto, ele, até mesmo pelo formato, permite que se tenha letras maiores”, observa.

A estrutura da música é formada por um conjunto de elementos, sendo a melodia, a harmonia, o ritmo e, não menos importante, a letra. Com ela, a canção pode capturar o ouvinte por entretê-lo e por lhe causar identificação. “Os seres humanos gostam de ouvir histórias, se identificam com elas”, observa Gaetani. “Por isso, o storytelling é um estudo válido, principalmente para os letristas”, avalia o arranjador e produtor musical.​